segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um dia que parecia de Verão


Num dia que parecia de Verão. Pelo murmúrio leve das famílias e dos casais de namorados. Pela pedra quente onde estava deitada. Pelas ondas brandas da baixa-mar. Pelo cheiro a musgo e a mar. Pelas gaivotas a dançarem no céu azul.


Eis em mim absorto
Sem o conhecer
Bóio no mar morto
Do meu próprio ser.

Sinto-me pesar
No meu sentir-me água...
Eis-me a balancear
Minha vida-mágoa.

Barco sem ter velas...
De quilha virada...
O céu com estrelas
É frio como espada.

E eu sou vento e céu...
Sou o barco e o mar...
Só que não sou eu...
Quero-o ignorar.

Fernando Pessoa

E, naquele momento, consegui. Mas momentos destes fogem-me como areia por entre os dedos... E um dia de Verão não põe fim ao Inverno de mim.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Flores

Tenho uma prima que é florista e houve um ano que tive que ir ajudá-la no dia de São Valentim. Antes da loja abrir já havia uma fila de 8 homens em frente à loja. Eram todos novos. Bem-vestidos. Perfumados. Alguns roíam as unhas. Outros ajeitavam a roupa. São os Ansiosos.
- Bom dia.
- Bom dia. O que vai…
- Eu queria um ramo de flores, rosas, umas 7 ou 8 não sei, vermelhas.
- Ok. Espere só um bocadinho.
- Mas eu queria também aqueles raminhos verdes, e aquela coisa…o embrulho… à volta, sabe? - Sim, sim não se preocupe.
- E queria também um daqueles cartõezinhos.
- Estão aí ao seu lado. Pode escolher um.
A minha prima faz o ramo. Mistura as rosas com os ramos. Põe o embrulho e os laços. Borrifa-as. Dá-lhes o jeitinho final.
-Olhe, desculpe! Afinal… não pode mudar as rosas? Eu acho que afinal ela gosta mais de rosas amarelas…

À noite vêm os mais velhos. Homens de fato e gravata que consultam o relógio vezes sem conta. Carro estacionado em 2ª fila. São os Desesperados.
- Boa n…
- Boa noite. Olhe, eu queria uma flor, se faz favor.

- E que flor vai querer? - Ah, pode ser uma rosa.
- E de que cor? Já não temos rosas vermelhas...
- Eh pah… Branca, rosa…Não sei escolha a menina.
- E quer que faça ramo? -Isso vai demorar muito?
- Não, não é rápido. - Então… sim, pode ser...
Eram 21h30 quando fechámos a loja. A minha prima comentava enquanto fechava a caixa que tinha vendido num só dia muito mais do costumava vender numa semana. Quando estávamos a acabar de varrer o chão bate à porta o antigo proprietário da loja, o senhor Joaquim. Tem quase 90 anos e apesar de já não trabalhar na loja há algum tempo, todos os dias, antes da loja fechar, passa por ali.
- Então, senhor Joaquim, vem buscar uma rosa para à dona Engracia?
- Não, não! Vim só ver se as meninas tinham conseguido dar hoje conta do recado. Apesar de flores não serem presente para se dar a ninguém num dia como este…
- Não?
- Claro que não, menina! Olhe, toda a minha vida vendi flores. O meu pai também era florista, sabe? Ainda não tinha 7 anos quando comecei a vender flores na rua. Acho que as flores são muito bonitas para enfeitar uma casa mas não para oferecer à nossa companheira…
- Então, mas porquê, senhor Joaquim?
- Porque murcham, menina... E o que é que tem de romântico oferecer a alguém, como prova do nosso amor, algo que é muito bonito ao início mas ao fim de uns poucos dias perde a cor, as pétalas caem uma a uma até que acaba por se desfazer e ter de se mandar para o lixo?


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Músicas contadoras de histórias 2

Putos a roubar maçãs


Ritmo monótono. Dedilham-se as cordas da guitarra.
Final de tarde. As janelas do prédio em frente reflectem um sol vermelho em rota descendente. Ele começa arrumar os papéis em cima da mesa. Agrafa-os uns aos outros, nuns quantos mete clips, faz pequenos montinhos que arruma em gavetas, pastas ou dossiers. Atira as aparas de borracha para o lixo. Arruma os lápis e canetas na gaveta. Gestos automáticos, mecânicos, entediantes. Finalmente, volta a sentar-se para desligar o computador mais o seu barulho monótono. Entretanto olha para as molduras ao lado do monitor. A filha e agora ex-mulher. Os pais em frente à sua velha casa na terra dos pomares.

Breve pausa na música. O suspense de uma velha memória...
A terra dos pomares. A terra da sua infância. Recomeça o guitarra. E entra o poderoso violoncelo. Cada nota são flashes de memórias julgadas perdidas há muito. Os pomares de maçãs a perder de vista. O barulho dos pardais nas árvores. Os muros de pedras redondas. O cheiro a terra molhada. Os amigos. Os finais de tarde vindos da escola pela estrada de terra. O jogo.

O violoncelo impõem-se. O ritmo cresce!
Ele quase que consegue sentir o esforço do seu corpo ao subir a árvore. E ouvir os gritos de regozijo cada vez que apanhava uma maçã e acenava com ela aos amigos, lá bem no alto, por entre os ramos da árvore. Depos descia com as maçãs nos bolsos. E o jogo recomeçava. Iam de árvore em árvore num corrida desenfreada enfiando as maçãs nos bolsos, no cinto, na mochila. Consegue quase a ouvir o som dos sapatos a bater na terra, o ladrar dos cães que não tardavam a aparecer. Os gritos enfurecidos dos donos atrás deles de pá ou foice na mão. Era tempo de saltar o muro e passar ao pomar seguinte.

O violoncelo e o violino cessam por fim. Agora, apenas a guitarra se faz ouvir.
E terminavam no fundo da estrada arranhados, ofegantes, sujos, estendendo-se na terra e sorrindo para o céu poente. Logo se endireitavam, ainda de respiração descontrolada, para contarem as maçãs roubadas por cada um e elegerem o justo vencedor. E, por fim, cansados e felizes, só se ouvia o trincar das maçãs suculentas e ainda mais deliciosas.

E voltam o violino e o vioncelo.

Todas notas se misturam no rodopio das velhas memórias e no vácuo do regresso à inevitável realidade.
O computador já se desligou. Os vidros do prédio da frente estão escuros em vez de vermelhos quando ele corre as persianas as persianas.

O violoncelo e o violino despedem-se. Últimas notas da guitarra.
Apaga as luzes. Fecha a porta do escritório atrás de si. A do tempo dos putos a roubar maçãs já se fechou há muito...