sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Músicas contadoras de histórias 2

Putos a roubar maçãs


Ritmo monótono. Dedilham-se as cordas da guitarra.
Final de tarde. As janelas do prédio em frente reflectem um sol vermelho em rota descendente. Ele começa arrumar os papéis em cima da mesa. Agrafa-os uns aos outros, nuns quantos mete clips, faz pequenos montinhos que arruma em gavetas, pastas ou dossiers. Atira as aparas de borracha para o lixo. Arruma os lápis e canetas na gaveta. Gestos automáticos, mecânicos, entediantes. Finalmente, volta a sentar-se para desligar o computador mais o seu barulho monótono. Entretanto olha para as molduras ao lado do monitor. A filha e agora ex-mulher. Os pais em frente à sua velha casa na terra dos pomares.

Breve pausa na música. O suspense de uma velha memória...
A terra dos pomares. A terra da sua infância. Recomeça o guitarra. E entra o poderoso violoncelo. Cada nota são flashes de memórias julgadas perdidas há muito. Os pomares de maçãs a perder de vista. O barulho dos pardais nas árvores. Os muros de pedras redondas. O cheiro a terra molhada. Os amigos. Os finais de tarde vindos da escola pela estrada de terra. O jogo.

O violoncelo impõem-se. O ritmo cresce!
Ele quase que consegue sentir o esforço do seu corpo ao subir a árvore. E ouvir os gritos de regozijo cada vez que apanhava uma maçã e acenava com ela aos amigos, lá bem no alto, por entre os ramos da árvore. Depos descia com as maçãs nos bolsos. E o jogo recomeçava. Iam de árvore em árvore num corrida desenfreada enfiando as maçãs nos bolsos, no cinto, na mochila. Consegue quase a ouvir o som dos sapatos a bater na terra, o ladrar dos cães que não tardavam a aparecer. Os gritos enfurecidos dos donos atrás deles de pá ou foice na mão. Era tempo de saltar o muro e passar ao pomar seguinte.

O violoncelo e o violino cessam por fim. Agora, apenas a guitarra se faz ouvir.
E terminavam no fundo da estrada arranhados, ofegantes, sujos, estendendo-se na terra e sorrindo para o céu poente. Logo se endireitavam, ainda de respiração descontrolada, para contarem as maçãs roubadas por cada um e elegerem o justo vencedor. E, por fim, cansados e felizes, só se ouvia o trincar das maçãs suculentas e ainda mais deliciosas.

E voltam o violino e o vioncelo.

Todas notas se misturam no rodopio das velhas memórias e no vácuo do regresso à inevitável realidade.
O computador já se desligou. Os vidros do prédio da frente estão escuros em vez de vermelhos quando ele corre as persianas as persianas.

O violoncelo e o violino despedem-se. Últimas notas da guitarra.
Apaga as luzes. Fecha a porta do escritório atrás de si. A do tempo dos putos a roubar maçãs já se fechou há muito...

Um comentário:

Plasticine disse...

O difícil nas músicas de Dead Combo (as instrumentais pelo menos) é a imaginação não nos voar para lado nenhum. A tua levou-te a uma bela história :)