terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Vontade de reencarnação

Este video é de uma actuação da Lisbon Film Orchestra no Parque Mayer no final deste Verão. Hoje faz precisamente um ano que fiquei a conhecer esta orquestra e até agora já (ou)vi três concertos. Dão-me vontade de acreditar na reencardanação e seria eu quem, numa outra vida, estaria ali numa noite de Verão com o meu vestido preto a fazer chorar aquele violino numa das mais belas músicas de sempre e a senti-lo como parte de mim.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Muse 29.11.09



Aping my soul,
You stole my overture,
Trapped in God's program,
Oh I can't escape

Who are we?
Where are we?
When are we?
Why are we?
Who are we?
Where are we?
Why, why, why?


I can't forgive you,
And I can't forget

Who are we?
Where are we?
When are we?
Why are we in here?

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

"Os cães de Babel", de Carolyn Parkhurst

Demoro sempre imenso tempo a escolher um livro. No dia em que comprei este livro, não foi diferente: tive mais de meia hora com dois livros na mão a tentar escolher qual levar. Quando, finalmente, me levanto ainda indecisa para ir pôr um livro de volta à prateleira e levar o outro reparei neste livro. Parei, li a contracapa e uma página ao acaso ainda duvidei mas acabei por pegar nele, esquecer-me dos outros dois livros ali mesmo e ir pagar. Não me arrependo.


"Isto é o que sabemos, aqueles de nós que podem falar para contar a história: Lexy não saltou. Os ferimentos que sofreu na queda, a maneira como os seus ossos quebraram e os danos provocados aos órgãos, o derrame fortuito do sangue na terra, disseram-nos isso. Mas talvez, e é aqui que sinto faltar-me a respiração, talvez ela se tenha deixado cair. Ela tinha a escolha do dia, e talvez naquele momento no cimo da árvore, ao olhar para baixo e ver o jardim, o mundo, a sua vida, estendidos por baixo dela, talvez tenha escolhido mergulhar neles de cabeça. Talvez tenha visto diante de si uma vida inteira a caminhar pela terra em ruínas e tenha escolhido antes um único momento no ar."

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

A moeda

"Repara bem. A vida olhada como uma moeda. Nada de mais redondo, conclusivo, perfeito. Simétrico.
Olha pois. Amacia-a entre os dedos, sente-lhe o peso, avalia as possibilidades.
Escolhe uma face ou deixa que uma face te escolha.

Olha pois. E de um lado tens."

in "A casa quieta", Rodrigues Guedes de Carvalho

E cai com estrondo a moeda na mesa. Gira sobre si própria. Rebola para longe. Vai mostrando ora uma face ora outra. Mais uma vez gira sobre si própria. Anda mais um pouco. Rebola. Uma face. A outra. E eis que nem uma nem outra. Fica a moeda erguida de lado.
Mas ainda balança! Talvez caía para um lado. Ou talvez para o outro. Não. Perde-se o balanço. Mantém-se erguida de lado a moeda imóvel. Nem dá para perceber assim que valor tem. A moeda sou eu.

sábado, 10 de outubro de 2009



Spend all your time waiting
for that second chance
for a break that would make it okay
there's always some reason
to feel not good enough
and it's hard at the end of the day
I need some distraction
oh beautiful release
memories seep from my veins
let me be empty
oh and weightless and maybe
I'll find some peace tonight

In the arms of the angel
fly away from here
from this dark cold hotel room
and the endlessness that you fear
you are pulled from the wreckage
of your silent reverie
you're in the arms of the angel
may you find some comfort here

So tired of the straight line
and everywhere you turn
there's vultures and thieves at your back
and the storm keeps on twisting
you keep on building the lines
that you make up for all that you lack
it doesn't make no difference
escaping one last time
it's easier to believe in this sweet madness oh
this glorious sadness that brings me to my knees

In the arms of the angel
fly away from here
from this dark cold hotel room
and the endlessness that you fear
you are pulled from the wreckage
of your silent reverie
you're in the arms of the angel
may you find some comfort here
you're in the arms of the angel
may you find some comfort here

Acho que esta música está agora sempre a passar em todas as rádios. Não gosto dessas músicas, tornam-se banais ao perderem a sua magia no ouvido de toda a gente e nos comentários do youtube. Por isso, esta noite sou dona de uma música...

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Lápis de bico partido

Não me falta o que dizer. Falta-me o como. A indefinição chega a este extremo. Raramente digo o que não quero, escolho é formas erradas de o dizer. Erros de expressão. Agora contagiam também aquilo que escrevo. Ou tento escrever. Meias frases com um risco em cima não contam.
Também não me consigo encontrar nas frases dos outros. Amontoam-se pelo quarto livros marcados com passagens que podiam ser minhas (mas não são que não tenho talento para isso). E em nenhuma delas me consigo rever agora...
Suspiro fundo como se pudesse expulsar toda esta indefinição de mim. Acabo de riscar o papel, deixo cair o lápis de bico partido. Agora deu-me para querer não pensar. Passei à fase do "Há coisas que não posso mudar, logo, não vale a pena pensar nisso".
Fiz a escolha mais importante da minha vida apesar de ninguém ter dado por isso. Eu dou pelo preço todos os dias. Foi a minha escolha. Não vale pensar mais nisso.
O mundo é injusto, sim. Mas um dia podia decidir ser injusto a meu valor, sim. E oiço, todos os dias, pessoas queixarem-se da sorte que eu invejo para mim, sim. Não vale a pena pensar nisso.

E depois há pessoas que, um dia, simplesmente, desaparecem na nossa vida por razões que nunca vamos chegar a compreender por muito que tentemos (e eu tento). Aceita-se. Grandes amizades não se imploram (e acho que as pequenas também não). Não vale a pensar mais nisso.
Às vezes, o "Não vale a pena pensar mais nisso." é uma forma de sobrevivência, não de birra.
Inspiro. Expiro. E não quero saber se vivo ou existo.
(Lá está, não penso nisso.)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Regresso à Terra do Nunca

"Quero ver
esse lugar
onde se não vê
para que sem disfarce
a minha luz se revele
e nesse mundo
descubra a que mundo pertenço."
Mia Couto, poema "Fundo do Mar", 1981

Talvez exista um lugar assim para toda a gente. Só que ainda não encontrei o meu. Nem a minha a luz nem o meu mundo.
Assim, por agora, limito-me a regressar a um lugar onde posso deixar de pensar nisso.
my neverland

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Talvez este fosse um daqueles dias...

Talvez este fosse um daqueles dias em que ia passar a tarde toda a cuidar de mim. Em que perderia tempo a pensar no verniz que ia usar. Em que ia constatar que, de facto, a minha pele já teve melhores dias. E já agora o meu cabelo também. Em que iria estender o meu guarda-roupa todo em cima da cama, mexer em tudo, conjugar tudo, desfazer tudo, suspirar que "não tenho nada de jeito para vestir", remexer tudo outra vez, experimentar umas quantas coisas, juntar os acessórios à equação, voltar a suspirar e, por fim, lá escolher o que levar mais por exaustão do que por certeza. Depois ia tomar um daqueles banhos que insultariam qualquer ambientalista para depois passar à fase dos cremes, do vestir, do maquilhar, do pentear e do observar o resultado.
Afinal é uma ocasião especial. O reencontro com alguns dos meus "amigos-barra-colegas" do secundário. Ainda nem um ano se passou mas esse tempo soa-me a anos. Como se fosse um daqueles reencontros de colegas de escola que não se vêem a 20 anos. Afinal, já não estudamos as mesmas coisas, não temos os meus horários, os mesmos problemas, os mesmos "colegas-barra-amigos". As nossas vidas já não são iguais: temos de ter mudado. Temos necessariamente de parecer diferentes do que éramos há um ano atrás. E eu sei que eles me vão parecer diferentes: grandes, adultos, vividos. Na forma de vestir talvez, numa ligeira mudança da forma como falam, dos assuntos porque também não haverá tempo para muito mais. Se quisesse, se tivesse perdido a tal tarde a cuidar de mim, talvez também parecesse assim: grande, adulta, vivida. Não, é mentira. Nem a mim me conseguiria enganar. Iria sempre parecer igual. Porque as diferenças mesmo que as houvesse não seriam aos olhos deles...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

A vida (que) não se perdeu

Podia ter escolhido continuar com o negócio de família. Ter uma vida próspera e sossegada. Mas não. Raul Solnado escolheu ser actor. Escolheu o caminho mais inesperado, mais arriscado, mais difícil e com ele revelou ao mundo o seu dom para fazer rir sem insensibilidades ou obscenidades, inovar sem nunca perder o conteúdo ou recorrer à piada fácil e mostrar que a comédia é, de facto, o discurso mais poderoso do mundo...
Foi todo um universo criativo que nos deixou, mas também uma vida que não se perdeu num caminho mais fácil. Também gostava de, um dia, escrever a minha autografia (mesmo que apenas imaginária) e dar-lhe exactamente o mesmo título que a deste grande senhor "A vida não se perdeu". Quem não gostaria? Ter a certeza, na velhice, que aplicámos cada gota de suor e lágrimas, cada centelha de força de vontade àquilo que realmente gostamos e naquilo em que somos realmente bons. E saber que podemos continuar a sonhar mas é a força do hábito, os maiores sonhos foram sonhados, vividos e agora lembrados com um sorriso doce nos lábios.
Acho que não devia haver só tristeza na sua morte mas também alegria porque ele conseguiu tudo isso. Raul Solnado pode agora ser lembrado como o maior comediante português de sempre, mas também foi um homem que arriscou, conseguiu alcançar os seus sonhos e com ele incentivou todos os outros a fazerem o mesmo : "Façam o favor de ser felizes!"

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

A Terra do Nunca

20-26/07
O acordar com o cantar estridente do galo.
O ir dar comida às galinhas a seguir ao pequeno-almoço.
Os longos passeios por entre os montes e riachos com a mochila às costas e os mais pequenos às cavalitas.
O almoço na grande mesa da cozinha com os miúdos a darem sorrateiramente pedaços de pão ao gato escondido debaixo da mesa.
As tardes a jogar à bola no descampado e a escalar os fardos de feno e palha ao som das cigarras.
As nódoas negras e arranhões nas pernas também salpicadas pelas picadas de urtigas.
As corridas de bicicletas pela rua abaixo.
O lanche com o pão quente acabado de sair do forno e manteiga a derreter por cima.
Os velhos filmes da Disney em tardes chuvosas.
Ter vizinhos chamados "tio Xico" e "tia Celestina" que nos convidam para merendar.
O passar pachorrento de um pequeno rebanho ou manada e seu pastor pelo meio da rua.
O jantar com a televisão desligada e sem ninguém dar por isso.
O passeio depois de jantar com o cão a trotar alegremente à frente, as estrelas e os pirilampos a iluminar-nos o caminho.
O dar conta que, de facto, o céu tem muitas e muitas estrelas.
O jogar às escondidas e à macaca no meio da rua antes de ir dormir.
A roupa imunda ao fim do dia, o belo banho e uma noite sem sonhos com os grilos a cantarem cada vez mais longe..

Desterrada do mundo naquela aldeia esquecida pela rede do telemóvel e da internet, voltei a saborear os dias como gomos de laranja doce. E cada um diferente pelo apuramento dos sentidos e colorido pela da imaginação.
Acho q
ue naqueles dias voltei a ser simplesmente criança...

25/07/09

sábado, 18 de julho de 2009

Um ano

17/07/09
Athena. Deusa da sabedoria, do ofício, da inteligência e da guerra justa. O nome que escolhi para me libertar do meu. Falta de humildade, talvez. Um ponta de cobardia, também. E um desejo enorme de me afastar da influência dos outros. Ver apenas com os meus olhos e não os deles.


Há um ano...

A minha confusão do ser em palavras.


O meu Hobbes.
O meu lar mais profundo.


O meu mirante.

Foto de Maria Lázaro.

A minha liberdade.


Um ano de Vi(ver).

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Diferenciação

"Diferenciação: alterações de maturação estáveis que experimenta a estrutura e propriedades de uma célula devido aos seus organitos particulares e produção de elementos por parte da matriz celular com especialização de funções específicas por perda de outras funções, por repressão e expressão de determinados genes."

Após um mês de exames que, afinal, se vai prolongar até dia 28 chego a conclusão de que o que preciso para sobreviver aos próximos 4 anos, pelo menos, é de uma diferenciação: especialização de funções específicas por perda de outras funções.

Preciso de ser como eles e, por isso, menos eu. Preciso de não estar apenas no curso que quero. Preciso de ser a pessoa certa para este curso como eles, muitos, que até nem estão nele por que querem...

Eles que acordam todos os dias motivados para aprender. Eu que dependo das minhas súbitas mudanças de humor por causas indeterminadas.
Eles que decoram nomes, funções, constituintes, reagentes, corantes, acidentes ósseos, particularidades entre espécies, genes, enzimas, hormonas, modos de actuação,... Eu que me esqueço de tudo isso mas sou capaz de me lembrar de uma pessoa que não vejo desde primária e não me reconhece na rua.
Eles que conseguem passar uma viagem inteira de autocarro a falar de um trabalho. Eu que prefiro observar as pessoas.
Eles que nunca adormecem nas aulas. Eu que, depois dos 20 minutos iniciais, oscilo entre o cair no son(h)o ou ler um livro metido por entre o caderno.
Eles que olham para um cavalo e discutem, entusiasmados, sobre o tipo de pelagem e as suas particularidades sem ou com sede fixa. Eu que fico a fazer-lhe festas.
Eles que uma vez disseram que Rodrigo Leão devia ser algum cantor pimba brasileiro. Eu que acho as músicas dele de outro mundo.
Eles que não gostavam de Português e acharam Fernando Pessoa simplesmente "estranho e aborrecido".
Eles que estão a estudar, motivados sempre, neste momento. Eu que estou a escrever no meu blog.
Eles que vêm a diferenciação, clara e objectivamente, como uma parte importante da matéria de Embriologia e Biologia do Desenvolvimento. Eu que em vez de estudar deixo que a minha mente frustada e cansada se ponha a inventar estas coisas...

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Hibernação de vida

8 exames. 30,5 créditos. 4 semanas.
Acordar, estudo, pequeno-almoço, estudo, almoço, estudo, lanche, estudo, jantar, estudo, dormir.
Chamo às próximas 4 semanas hibernação de vida. Parou a chuva, o sol brilha lá fora, as pessoas andam de manga curta na rua. Afinal, é quase Verão...
Mas não aqui dentro de casa, com os olhos postos há horas numa matéria que parece não ter fim, a fazer apelo a minha péssima memória para nomes que decore uma lista infindável deles e mais tudo o que significam e implicam. Para mim, com o ler, o reler, o sublinhar, o olhar para o relógio e o suspirar até podia ser um daqueles dias de Inverno escuros, chuvosos e tristes que eu não daria pela diferença...

O telemóvel toca. É um colega da faculdade. Leia-se possíveis informações úteis. Talvez uma dúvida importante que ainda não me tenha ocorrido, um "pormenor" importante que afinal de pormenor tem pouco, uma dica ouvida de alguém do ano seguinte, uma informação sobre o exame que o professor deixou escapar a não sei quem que depois disse ao amigo da amiga de A, que contou a B que decidiu partilhar com C que, pelos vistos, é o meu colega .

Nestas 4 semanas dá-se uma (re)catalogação das pessoas. A categoria daqueles que são fontes úteis. A categoria dos que só vêm baralhar tudo. A categoria dos que partilham informação dividida nas subcategorias daqueles que partilham com toda a gente, daqueles que só partilham com o seu grupinho, e, por fim, daqueles que simplesmente não partilham. Existe ainda a categoria daqueles a quem se fica a dever e daqueles que nos ficam a dever.

É isto estas 4 semanas. Pode parecer de loucos (é!). Pode parecer angustiante (é!). Pode ser horrível ver como tudo se resume a dicas e a informações uteis (é!). Mas depois de me habituar descobri que é tudo muito mais fácil, afinal de contas:

Existe um objectivo bem definido.
Há sempre tema de conversa com toda a gente embora ele seja sempre o mesmo.
Não existe tempo para pensar noutros problemas para além do exame seguinte.
Nem disponibilidade mental para desejar encontrar olhos azuis e boas conversas de autocarro.
E o cansaço abafa os sonhos e tudo aquilo que nunca chegou a acontecer.

Porque afinal, o que interessa nestas 4 semanas é apenas sobreviver o melhor possível...

domingo, 31 de maio de 2009

O erro da sra. astróloga

"Não espere por nada nem por ninguém na altura de realizar os seus sonhos. Terá de aprender a não depender dos outros." dizia a sra. astróloga Yolanda Qualquer-Coisa sobre o signo de Balança nas suas previsões diárias para um jornal diário gratuito qualquer daqueles que uso para fazer o sudoku à hora de almoço.

Ora, esta senhora está enganada. Muito enganada. Não sei como terá visto isto no movimento dos astros mas eles de certeza é que não se enganaram (se alguma razão têm...) Talvez o problema esteja apenas na interpretação...

"Não espere por ninguém na altura de realizar os seus sonhos." Sim. Certo. Só eu poderei realizar os meus sonhos. Só a mim eles fazem parte. "O sonho comanda a vida". Não os outros.

"Terá de aprender a não depender dos outros". Também concordo. Sim, dependo muito dos outros. Dependo de boas conversas no autocarro para que o dia seja bom. Dependo da boa disposição dos outros para contagiar a minha. Dependo de me sentir bem no meio dos outros. Depende de me identificar com os outros. Os outros. Sempre os outros.

Mas vamos imaginar que, um dia, eu consigo alcançar os meus sonhos. Tal como a senhora Yolanda disse: não esperando nem dependendo de ninguém.
Que, um dia, que vou fazer uma viagem pelo mundo só com uma mochila às costas. Que vou assistir a uma partida no Roland Garros. Que faço mergulho, para-quedismo e bungee jumping. Não esperei por niguém. E agora? Não faço essa viagem. Não vou a esse torneio. Não mergulho. Não voou. Não salto. Para mim, estas coisas não foram feitas para se fazerem sozinhas. E as histórias são para ser contadas, pelo menos, a dois.

Vamos imaginar que, um dia, consigo ir trabalhar para o estrangeiro na minha (ainda por descobrir) especialidade . Trabalho naquilo que gosto e naquilo que sou realmente boa. Ganho bem. Sou respeitada por isso. Por não depender de ninguém. E, depois de mais um dia de trabalho, volto para a minha vivenda com jardim num bairro calmo ao pé da cidade. Tenho o cão à minha espera e um sofá confortável com um grande gato a dormir em cima. Ponho a musica a tocar e danço sozinha. Depois do banho no jacuzzi faço a jantar apenas para um com o gato na sala vazia e o cão aos meus pés. Que vida é essa?

E, mesmo que não consiga nada disto, vamos imaginar que, um dia, simplesmente consigo comprar uma daquelas máquinas café da Nespresso caríssimas que sempre quis ter e exprimentar todos os sabores de café do mundo. Mas, às vezes, até o pior dos cafés sabe bem desde que se tenha uma boa companhia- É pena o inverso não ser igualmente verdadeiro...

Não sei se os astros se enganaram ou não. Ou foi apenas a sra. astróloga Yolanda Qualquer-Coisa na sua tentativa de transformar os seus movimentos e posições relativas em frases semi-filosóficas. Só sei que o sonho pode comandar a minha vida. Que poderei ter de abdicar de muita coisa e gente para os concretizar. Mas nos meus sonhos também nunca estou sozinha...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Brilho especial

Há falta de palavras minhas, encontro-me nas dos outros.

"Mas, como todos sabiam, as mulheres amadurecem muito mais rapidamente que os homens e Maria - embora não passasse noites em claro a pensar nos seus conflitos filosóficos - pelo menos uma coisa sabia: não possuía aquilo a que o pintor chamava "luz" e que ela interpretava como um 'brilho especial'. Era uma pessoa como todas as outras, sofria a sua solidão em silêncio, tentava justificar tudo o que fazia, fingia ser forte quando estava muito fraca, renunciara a qualquer paixão em nome de um trabalho perigoso, mas agora, já perto do fim, tinha planos para o futuro e arrependimentos do passado - e uma pessoa assim não tem nada de "brilho especial". Aquilo devia ser apenas uma maneira de a manter calada e feliz por estar ali, imóvel, fazendo o papel de idiota.
'Luz pessoal. Podia ter escolhido outra coisa, como 'o seu perfil é lindo'.
Como entra a luz numa casa? Se as janelas tiverem abertas. E como entra a luz numa pessoa?"
"Onze Minutos", Paulo Coelho

Foto de Helder Vasconcelos

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Desejos vãos




Eu queria ser o Mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o Sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras... essas... pisa-as toda a gente!...
Poema de Florbela Espanca

Mar. Árvore. Sol. Pedra. Tenho de escolher o que quero, pelo menos.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Dia mau/ dia bom

20/04/09
6h30 O despertador toca. Ela adormece. Perde o 1º autocarro. Perde o 2º autocarro. Chega atrasada à aula de anatomia. Os cadáveres congelados arrefecem-lhe as mãos. Avaliação oral. Dos 22 músculos da aula desse dia, esquece-se do nome de 2. Chumbada. Aula de Histologia. Tem um colega, ao seu lado, que faz imensas perguntas ao professor. Pensa que gostava de ter, pelo menos, um quinto do seu entusiasmo. Aula de Embriologia. Mais 40 slides de matéria. Aula de Bioquimica II. Por incrivel que pareça consegue ser ainda mais dificil que a primeira. Volta a apensar que este é, de facto, o curso que sempre quis. Mas talvez não seja apenas a pessoa certa para ele…

13h Fila do almoço. Comentam sempre que é enorme… Almoço. Fala-se de um concerto para breve de uma colega, de uma exibiçao de capoeira no fim-de-semana passado de outro colega e do exame de código marcado para amanhã de outro. Ela ouve, não tem nada a acrecentar.

14h 1ª aula da tarde. Aos 20 minutos adormece. Acorda de cada vez que se sente a escorregar da cadeira. Ou quando um colega lhe dá um toque no braço e se ri. O professor olha para ela e franze a testa. 2ªa aula da tarde: Zootecnia Geral. É a cadeira que mais gosta. Mas os colegas nãem por isso Torna-se dificil ouvir a voz baixa do professor por entre o ruído das conversas.


16h Perde o autocarro dessa hora por pouco. Não valia a pena terem corrido. Fala-se dos 7 trabalhos para entregar no mês que vem. Suspira-se. Aparece o autocarro. Refila-se que vem sempre cheio. Volta a falar-se dos trabalhos. Um miudo faz birra. Uma senhora idosa descreve às outras duas todas as operações que já teve qua fazer. Agora fala-se mal dos professores de Anatomia. Mas até esse assunto se gasta. Silêncio até que ela diz o "até amanhã" do costume aos colegas e saí aliviada na paragem de autocarro.

16h50 Agora falta apanhar o 2º autocarro. A fila de espera já vai grande. Mas consegue arranjar lugar sentada. Trânsito. A bateria do mp3 vai-se. Resta-lhe a (horrível) música kizomba de um rapaz sentado atrás de si.

17h30 Chega a casa. Lancha. Estuda. Toma banho de água morna porque al mãe se esqueceu de encomendar o gás. Janta. Adormece no sofá a ver uma série. O irmão acorda-a dissendo que sala não é sitio para se dormir. Vai preparar as coisas para o dia seguinte. Vai para cama.

27/04/09
Hoje ela não adormeceu mas o 1º autocarro teve um furo. Voltou a chegar atrasada. Enervou-se na aula de anatomia e cortou um músculo que não devia. O professor não fez avaliação mas anotou a falha. O resto do dia foi basicamente igual ao da semana passada.
Mas, apesar de tudo isso, hoje foi para ela um bom dia. Bastou uns olhos azuis que raramente vê, um sorriso, um “olá” e uma boa conversa no autocarro. Porque estas “desgraças” todas podem ser muito engraçadas quando partilhadas com as pessoas certas. E sabe sempre bem saber das “desgraças” dos outros também. Ou simplesmente ter sempre assunto de conversa.

Afinal, não sou uma pessoa triste nem complicada. Para um dia ser bom basta-me apenas um sorriso, um “olá” e uma boa conversa...

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Wrong

"Talvez a felicidade seja isto : não sentirmos que devíamos estar noutro lugar, a fazer outra coisa, sendo outra pessoa." Eric Weiner

Talvez a felicidade seja o contrário do meu estado de espírito. No dia de hoje que não foi mau e também não foi bom. Foi apenas mais um dia demasiado parecido com os outros. Em que disse os bons-dias com um sorriso, em que conversei, em que contei piadas e em que me ri das piadas dos outros. Tal como em todos os outros dias. Como pessoa bem-disposta que sou tida em conta por alguns, os que me rodeiam durante o dia.
Resta a irrealidade de tudo isto. A confusão dos pensamentos. O descoordenamento da indefinição. O sufoco da passagem do tempo não aproveitado. O cansaço da luta de todos os dias.
E a escrita patética supostamente compensada por um letra de uma música.
Resto eu. Mentira. Resta tudo aquilo que eu não consigo ser para além de uma mistura infinita de Erros.


Wrong (Radio Version) - Depeche_Mode

I was born with the wrong sign
In the wrong house
With the wrong ascendancy
I took the wrong road
That led to the wrong tendencies
I was in the wrong place at the wrong time
For the wrong reason and the wrong rhyme
On the wrong day of the wrong week
I used the wrong method with the wrong technique
Wrong
Wrong

There's something wrong with me
Cannot be something wrong with me
Inherently
The wrong mix in the wrong genes
I reached the wrong ends by the wrong means
It was the wrong plan
In the wrong hands
With the wrong theory for the wrong man
The wrong lies, on the wrong vibes
The wrong questions with the wrong replies
Wrong
Wrong

I was marching to the wrong drum
With the wrong scum
Pissing out the wrong energy
Using all the wrong lines
And the wrong signs
With the wrong intensity
I was on the wrong page of the wrong book
With the wrong rendition of the wrong hook
Made the wrong move, every wrong night
With the wrong tune played till it sounded right yah
Wrong
Wrong
Wrong

I was born with the wrong sign
In the wrong house
With the wrong ascendancy
I took the wrong road
That led to the wrong tendencies
I was in the wrong place at the wrong time
For the wrong reason and the wrong rhyme
On the wrong day of the wrong week
I used the wrong method with the wrong technique

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A praia da fotografia

Praia das Maçãs - 11/04/09


Em cima de um móvel da minha casa de jantar está, desde que me lembro, uma foto muito parecida com esta. Foi tirada neste exacto local. Durante a baixa-mar a avaliar pela espuma das ondas e as marcas na areia. Possivelmente na mesma altura do dia pela posição do sol escondido entre as nuvens cinzentas. E num dia igualmente frio e ventoso a avaliar pelo kispo vermelho da criança que sorri e acena com uma mão suja de areia bem no meio da fotografia.

Não sei que idade tinha na altura. Talvez 4, 5 anos... Usei aquele kispo tantos anos... Tinha montes de bolsos de onde tirava as mais diversas coisas como molas, pedras, brindes dos ovos Kinder e até caracóis. Na foto ainda me dava por depois do joelho. Quando o deixei de usar dava-me pela cintura. Ainda usava franja também. E o cabelo certinho pelo ombro que me esvoaçava pela cara ao sabor do vento. E tinha aquele sorriso. Não era bonito nem feio. Era um sorriso de quem fica feliz só por correr na areia e não se importa de ficar mal na fotografia...

Quando era pequena tinha o hábito de me imaginar quando fosse grande. Passava horas a imaginar como seria o meu aspecto, as minhas roupas, o meu quarto. Inventava nomes para o meu namorado, para os meus amigos, para os meus colegas. Criava situações do meu dia-a-dia desde as mais alegres até aos problemas mais complicados de resolver. Quando fosse grande.

Agora, 14 anos depois, já não sou pequena. Mas também não sei se sou grande.. Sei que já não tenho aquele kispo mas um casaco. E que em vez dos brindes dos ovos Kinder e dos caracóis nos bolsos agora tenho o telemóvel e o mp3. Também já não tenho a franja nem o cabelo certinho pelo ombro. E já não fico feliz só por correr na areia nem sorrio muito para as fotos com medo de ficar mal nas fotografias. Ou simplesmente não apareço nelas como é o caso...
Fica a praia que parece exactamente igual aquilo que era há 14 anos. Haja algo que não mude com o tempo...

terça-feira, 31 de março de 2009

(Falta de) Sorte


- "E agora, senhores alunos, temos os trevos. Existem diversas espécies de trevos mas todas elas pertencem ao género Trifolium. As mais abundantes vão ter de saber identificar. Um dos mais comuns em Portugal é o Trifolium repels. Já toda a gente o viu de certeza... É aquele que se diz que dá sorte..."

Sorte. Sorte era não estar fechada nesta sala de aula nos primeiros dias da Primavera. Sorte era ela esbarrar com ele naquela esquina ao pé das escadas. Ela a descê-las para depois virar à direita. Ele a virar à esquerda para depois as subir. Os dois com pressa. A dobrar a esquina. No mesmo instante. Sorte era o encontr(ã)o inevitável.

Sorte. Sorte era terem os mesmos horários. Quase todas as manhãs, encontrar-se-iam no autocarro. Ela com os cadernos na mão e a mala ao ombro. Ele com a mochila às costas e o cabelo molhado. E a conversa surgiria, solta e livre, embalada pelas curvas e pelo trânsito. Sem silêncios incómodos quando não se sabe mais o que se há-de dizer. E quase todas as tardes, regressariam também no mesmo autocarro. Ela cansada e cheia de coisas para contar. Ele com fome e cheio de coisas para contar. E a conversa surgiria, mais calma, mais pausada, no meio de toda aquela gente irritada com o trânsito no regresso a casa. Sem silêncios incómodos quando tudo o que havia a dizer já foi dito e redito e dito de outra maneira. Sorte era que estas conversas, algum dia, pudessem ter a oportunidade de existir.

Sorte. Sorte era que as fugazes passagens um pelo outro se pudessem repetir mais vezes. Que não ficassem por um simples olhar. Ela com os seus olhos castanhos. Ele com os seus olhos azuis. Sorte era não haver quatro anos pelo meio mais os amigos dele (tão veteranos) e as amigas dela (tão caloiras). Sorte era poderem simplesmente cruzarem-se ao longo do dia e darem dois, três, quatro dedos de conversa até que se lembrassem que estavam atrasadíssimos para a aula.

Sorte era que os autocarros, os horários opostos, os amigos dele, as amigas dela e os quatro anos de diferença os deixassem, por fim, conhecerem-se. Ele e ela. Simplesmente conversar. Discutir filmes, músicas, livros, partilhar experiências, segredos mais ou menos bem guardados. Falar de tudo e de coisa nenhuma. Serem amigos. Fazerem parte da vida um do outro. Sorte era ele e ela não serem apenas duas pessoas que se encontram raramente no auttocarro.

E sorte era esta história não ser na primeira pessoa. Sorte era que algo acontecesse simplesmente. Acontecer. Ter azar pode não ser quando nos acontecem coisas más. Azar pode ser apenas o não acontecer. Pois sorte era eu não estar no meio de uma aula importante a pensar na (falta de) sorte e nos "se"s daquilo que fica sempre por acontecer...

sábado, 7 de março de 2009

Just imagine

"A arte não reproduz o que vemos. Ela faz-nos ver." (Paul Klee)

Ver como tudo muda, tudo se transforma sem querermos nada, sem fazermos nada, sem vermos nada. Só quando se levanta os olhos do bico do sapato é que se dá pela mudança de paisagem... Para, logo depois, os grãos de areia voltarem a escorregar de novo das mãos secas como o deserto enquanto os seus irmãos continuam a cair invarialmente no fundo da ampulheta. Uma nova paisagem. Artista anonimamente desconhecido (ou talvez não...). Que sejamos os artistas das nossas próprias paisagens! Ou, pelo menos, "just imagine"...


Ilana Yahav é uma das artistas mais conhecidas na arte de "sand animation". Utiliza apenas os seus dedos para desenhar com areia numa mesa de vidro. Este é apenas um dos seus trabalhos chamado de "Just imagine".

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Um dia que parecia de Verão


Num dia que parecia de Verão. Pelo murmúrio leve das famílias e dos casais de namorados. Pela pedra quente onde estava deitada. Pelas ondas brandas da baixa-mar. Pelo cheiro a musgo e a mar. Pelas gaivotas a dançarem no céu azul.


Eis em mim absorto
Sem o conhecer
Bóio no mar morto
Do meu próprio ser.

Sinto-me pesar
No meu sentir-me água...
Eis-me a balancear
Minha vida-mágoa.

Barco sem ter velas...
De quilha virada...
O céu com estrelas
É frio como espada.

E eu sou vento e céu...
Sou o barco e o mar...
Só que não sou eu...
Quero-o ignorar.

Fernando Pessoa

E, naquele momento, consegui. Mas momentos destes fogem-me como areia por entre os dedos... E um dia de Verão não põe fim ao Inverno de mim.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Flores

Tenho uma prima que é florista e houve um ano que tive que ir ajudá-la no dia de São Valentim. Antes da loja abrir já havia uma fila de 8 homens em frente à loja. Eram todos novos. Bem-vestidos. Perfumados. Alguns roíam as unhas. Outros ajeitavam a roupa. São os Ansiosos.
- Bom dia.
- Bom dia. O que vai…
- Eu queria um ramo de flores, rosas, umas 7 ou 8 não sei, vermelhas.
- Ok. Espere só um bocadinho.
- Mas eu queria também aqueles raminhos verdes, e aquela coisa…o embrulho… à volta, sabe? - Sim, sim não se preocupe.
- E queria também um daqueles cartõezinhos.
- Estão aí ao seu lado. Pode escolher um.
A minha prima faz o ramo. Mistura as rosas com os ramos. Põe o embrulho e os laços. Borrifa-as. Dá-lhes o jeitinho final.
-Olhe, desculpe! Afinal… não pode mudar as rosas? Eu acho que afinal ela gosta mais de rosas amarelas…

À noite vêm os mais velhos. Homens de fato e gravata que consultam o relógio vezes sem conta. Carro estacionado em 2ª fila. São os Desesperados.
- Boa n…
- Boa noite. Olhe, eu queria uma flor, se faz favor.

- E que flor vai querer? - Ah, pode ser uma rosa.
- E de que cor? Já não temos rosas vermelhas...
- Eh pah… Branca, rosa…Não sei escolha a menina.
- E quer que faça ramo? -Isso vai demorar muito?
- Não, não é rápido. - Então… sim, pode ser...
Eram 21h30 quando fechámos a loja. A minha prima comentava enquanto fechava a caixa que tinha vendido num só dia muito mais do costumava vender numa semana. Quando estávamos a acabar de varrer o chão bate à porta o antigo proprietário da loja, o senhor Joaquim. Tem quase 90 anos e apesar de já não trabalhar na loja há algum tempo, todos os dias, antes da loja fechar, passa por ali.
- Então, senhor Joaquim, vem buscar uma rosa para à dona Engracia?
- Não, não! Vim só ver se as meninas tinham conseguido dar hoje conta do recado. Apesar de flores não serem presente para se dar a ninguém num dia como este…
- Não?
- Claro que não, menina! Olhe, toda a minha vida vendi flores. O meu pai também era florista, sabe? Ainda não tinha 7 anos quando comecei a vender flores na rua. Acho que as flores são muito bonitas para enfeitar uma casa mas não para oferecer à nossa companheira…
- Então, mas porquê, senhor Joaquim?
- Porque murcham, menina... E o que é que tem de romântico oferecer a alguém, como prova do nosso amor, algo que é muito bonito ao início mas ao fim de uns poucos dias perde a cor, as pétalas caem uma a uma até que acaba por se desfazer e ter de se mandar para o lixo?


sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Músicas contadoras de histórias 2

Putos a roubar maçãs


Ritmo monótono. Dedilham-se as cordas da guitarra.
Final de tarde. As janelas do prédio em frente reflectem um sol vermelho em rota descendente. Ele começa arrumar os papéis em cima da mesa. Agrafa-os uns aos outros, nuns quantos mete clips, faz pequenos montinhos que arruma em gavetas, pastas ou dossiers. Atira as aparas de borracha para o lixo. Arruma os lápis e canetas na gaveta. Gestos automáticos, mecânicos, entediantes. Finalmente, volta a sentar-se para desligar o computador mais o seu barulho monótono. Entretanto olha para as molduras ao lado do monitor. A filha e agora ex-mulher. Os pais em frente à sua velha casa na terra dos pomares.

Breve pausa na música. O suspense de uma velha memória...
A terra dos pomares. A terra da sua infância. Recomeça o guitarra. E entra o poderoso violoncelo. Cada nota são flashes de memórias julgadas perdidas há muito. Os pomares de maçãs a perder de vista. O barulho dos pardais nas árvores. Os muros de pedras redondas. O cheiro a terra molhada. Os amigos. Os finais de tarde vindos da escola pela estrada de terra. O jogo.

O violoncelo impõem-se. O ritmo cresce!
Ele quase que consegue sentir o esforço do seu corpo ao subir a árvore. E ouvir os gritos de regozijo cada vez que apanhava uma maçã e acenava com ela aos amigos, lá bem no alto, por entre os ramos da árvore. Depos descia com as maçãs nos bolsos. E o jogo recomeçava. Iam de árvore em árvore num corrida desenfreada enfiando as maçãs nos bolsos, no cinto, na mochila. Consegue quase a ouvir o som dos sapatos a bater na terra, o ladrar dos cães que não tardavam a aparecer. Os gritos enfurecidos dos donos atrás deles de pá ou foice na mão. Era tempo de saltar o muro e passar ao pomar seguinte.

O violoncelo e o violino cessam por fim. Agora, apenas a guitarra se faz ouvir.
E terminavam no fundo da estrada arranhados, ofegantes, sujos, estendendo-se na terra e sorrindo para o céu poente. Logo se endireitavam, ainda de respiração descontrolada, para contarem as maçãs roubadas por cada um e elegerem o justo vencedor. E, por fim, cansados e felizes, só se ouvia o trincar das maçãs suculentas e ainda mais deliciosas.

E voltam o violino e o vioncelo.

Todas notas se misturam no rodopio das velhas memórias e no vácuo do regresso à inevitável realidade.
O computador já se desligou. Os vidros do prédio da frente estão escuros em vez de vermelhos quando ele corre as persianas as persianas.

O violoncelo e o violino despedem-se. Últimas notas da guitarra.
Apaga as luzes. Fecha a porta do escritório atrás de si. A do tempo dos putos a roubar maçãs já se fechou há muito...

sábado, 31 de janeiro de 2009

Momentos Nicola (ou algo mais)

29/01/09
Adoro café. Não o tomo para despertar até porque nunca notei qualquer efeito em mim mas apenas pelo seu sabor. Gostos não se discutem e sabores não se explicam. Mas mesmo quem simplesmente odeia café de certeza que já reparou que, desde algum tempo, os pacotes de açúcar de quase todas as marcas tem umas certas frases num dos lados. Não vou dizer que elas sao filosóficas, poéticas, inspiradoras, profundas, românticas, palermas, lamechas, ridículas ou simplesmente uma boa ideia de marketing. Isso depende da forma como está a ser (ou não) saboreado o café. E mais uma vez sabores não se explicam...
Mas independetemente disso a verdade é que estas frases não deixam ninguém indiferente. E isso é algo que acontece poucas vezes seja em relação aquilo que for...
Para mim são breves momentos de lucidez. Momentos em que eu me ajusto à frase. Ou simplesmente deixo que ela se ajuste a mim. Ajusto-me. Hoje entre a multidão eufórica da primeira fase de exames terminada. Entre as malas daqueles que voltam para a terra. Entre os outros que não sabem o que isso é. E todos na ansia das datas, dos números, do "reprovado" e do "aprovado". Toda a gente fala. Ninguém se ouve.Telemóveis na mão. Dedos a velocidade da luz. Contágio de receios, ansias e preocupações. Levo a mão ao bolso do casaco talvez a procura do meu também e dele tiro isto:


O meu momento de lucidez. O meu momento café Nicola (ou algo mais) que vai aparecendo nas mais diversas formas. Hoje apareceu assim... Talvez seja um bom começo embora não saiba para o quê. Desapareceu a lucidez. Desapareceu o momento Nicola (ou algo mais). Resta o registo a partir de agora.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Músicas contadoras de histórias 1

"Durante uma semana, todos os dias, sofrendo o vento e a chuva pelos caminhos alagados de S. Sebastião da Pedreira, o músico foi tocar duas, três horas, até que Blimunda teve forças para levantar-se, sentava-se ao pé do cravo, pálida ainda, rodeada de música como se mergulhasse por um profundo mar, diremos nós, que ela por aí nunca navegou, o seu naufrágio foi outro. Depois a saúde voltou depressa, se realmente faltara."
in "Memorial do Convento" de José Saramago

Às vezes o que me falta é apenas um mar profundo onde possa mergulhar. Onde seja livre de voar ao sabor das ondas. E flutuar com as gaivotas a esvoaçarem lá muito em cima no céu. Livre das âncoras do passado. Livre das minhas histórias mais os seus naufrágios. O meu mar. As minhas histórias. Às vezes eu quero outro mar. Outras histórias. E há musicas que são simplesmente de outro mundo. Há músicas excelentes contadoras de histórias.


As marionetas


Fragmagens - Donna Maria


Esta música lembra-me um filme. As notas do piano, logo no ínicio, parecem indicar que será um filme triste.
Mas depois há uma mudança súbita de ritmo. Dá-se ínico, então, à história.
E entra o violino. O instrumento mágico. E a conjugação dos dois instrumentos é a banda sonora perfeita de um filme de marionetas. Cada nota ritimada do piano é um puxar dos cordões que movem as marionetas. Invisíveis. Cada nota mágica do violino dá acção à história. E as marionetas movem-se, gesticulam, falam na tela do cinema. Sucedem-se as acções. As histórias. Os acontecimentos. As pessoas. As emoções. Os sentimentos. Numa roda-vida de movimentos repetitivos, calculados, planeados, estudados em camâra rápida.
Mas eis que as notas do piano e do violino se alteram. E o ritmo também. Talvez os cordões nao sejam assim tao invisiveis! Talvez as marionetas possam, um dia, ter vontade própria..
Suspense.
As notas do violino tornam-se mais mágicas, mais agudas, mais delicadas, mas profundas...Mais cortantes pelo peso da consciencia.
No final, volta o piano. O filme acaba.
Passam os créditos finais.
As marionetas de fios invisiveis continuam marionetas.
Jazem caídas no palco.
Por hoje a
cabou-se o espectáculo.
Fundo preto.

sábado, 10 de janeiro de 2009

(Falta de) Liberdade

Liberdade
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada
O sol doira
Sem literarura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente natinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma
[...]
Fernando Pessoa

Com 12 capitulos, 256 páginas, dezenas de gráficos, esquemas e fórmulas geométricas de outros tantos compostos e um exame na terça-feira seguidos de outros 7 em 3 semanas(no mínimo, isto é, se não chumbar a nenhum, claro...) este poema não é propriamente aquele que deveria pairar na minha cabeça neste momento. Mas, enquanto as famílias, funções, constituição e carga eléctrica da fosfatidiletanolamina, fosfatioilinositol, fosfatidilserina, fosfatidilglicerol e afins me bailam diante dos olhos, não deixo de pensar o quanto este poema pode ser verdadeiro...
Mas também nunca ninguém disse o que é verdadeiro é o que está certo. Nem que, às vezes, o cinzento apaga a luz de todas as outras cores além de ser das cores mais difícieis de apagar. E os sonhos têm também o seu lado cinzento...